domingo, 9 de março de 2014

AULAS DOS TERCEIROS ANOS DE FILOSOFIA E.E. RUI BARBOSA


AULAS DE FILOSOFIA 3º ANOS

Qual é a diferença entre ética e moral?

Podemos responder a esta pergunta com uma história árabe.

Um homem fugia de uma quadrilha de bandidos violentos quando encontrou, sentado na beira do caminho, o profeta Maomé. Ajoelhando-se à frente do profeta, o homem pediu ajuda: essa quadrilha quer o meu sangue, por favor, proteja-me!

O profeta manteve a calma e respondeu: continue a fugir bem à minha frente, eu me encarrego dos que o estão perseguindo.

Assim que o homem se afastou correndo, o profeta levantou-se e mudou de lugar, sentando-se na direção de outro ponto cardeal. Os sujeitos violentos chegaram e, sabendo que o profeta só podia dizer a verdade, descreveram o homem que perseguiam, perguntando-lhe se o tinha visto passar.

O profeta pensou por um momento e respondeu: falo em nome daquele que detém em sua mão a minha alma de carne: desde que estou sentado aqui, não vi passar ninguém.

Os perseguidores se conformaram e se lançaram por um outro caminho. O fugitivo teve a sua vida salva.

A moral incorpora as regras que temos de seguir para vivermos em sociedade, regras estas determinadas pela própria sociedade. Quem segue as regras é uma pessoa moral; quem as desobedece, uma pessoa imoral.

A ética, por sua vez, é a parte da filosofia que estuda a moral, isto é, que reflete sobre as regras morais. A reflexão ética pode inclusive contestar as regras morais vigentes, entendendo-as, por exemplo, ultrapassadas.

Se o profeta fosse apenas um moralista, seguindo as regras sem pensar sobre elas, sem avaliar as consequências da sua aplicação irrefletida, ele não poderia ajudar o homem que fugia dos bandidos, a menos que arriscasse a própria vida. Ele teria de dizer a verdade, mesmo que a verdade tivesse como consequência a morte de uma pessoa inocente.

Se avaliarmos a ação e as palavras do profeta com absoluto rigor moral, temos de condená-lo como imoral, porque em termos absolutos ele mentiu. Os bandidos não podiam saber que ele havia mudado de lugar e, na verdade, só queriam saber se ele tinha visto alguém, e não se ele tinha visto alguém “desde que estava sentado ali”.

Se avaliarmos a ação e as palavras do profeta, no entanto, nos termos da ética filosófica, precisamos reconhecer que ele teve um comportamento ético, encontrando uma alternativa esperta para cumprir a regra moral de dizer sempre a verdade e, ao mesmo tempo, ajudar o fugitivo. Ele não respondeu exatamente ao que os bandidos perguntavam, mas ainda assim disse rigorosamente a verdade. Os bandidos é que não foram inteligentes o suficiente, como de resto homens violentos normalmente não o são, para atinarem com a malandragem da frase do profeta e então elaborarem uma pergunta mais específica, do tipo: na última meia hora, sua santidade viu este homem passar, e para onde ele foi?

Logo, embora seja possível ser ético e moral ao mesmo tempo, como de certo modo o profeta o foi, ética e moral não são sinônimas. Também é perfeitamente possível ser ético e imoral ao mesmo tempo, quando desobedeço uma determinada regra moral porque, refletindo eticamente sobre ela, considero-a equivocada, ultrapassada ou simplesmente errada.

Um exemplo famoso é o de Rosa Parks, a costureira negra que, em 1955, na cidade de Montgomery, no Alabama, nos Estados Unidos, desobedeceu à regra existente de que a maioria dos lugares dos ônibus era reservada para pessoas brancas. Já com certa idade, farta daquela humilhação moralmente oficial, Rosa se recusou a levantar para um branco sentar. O motorista chamou a polícia, que prendeu a mulher e a multou em dez dólares. O acontecimento provocou um movimento nacional de boicote aos ônibus e foi a gota d’água de que precisava o jovem pastor Martin Luther King para liderar a luta pela igualdade dos direitos civis.

No ponto de vista dos brancos racistas, Rosa foi imoral, e eles estavam certos quanto a isso. Na verdade, a regra moral vigente é que estava errada, a moral é que era estúpida. A partir da sua reflexão ética a respeito, Rosa pôde deliberada e publicamente desobedecer àquela regra moral.

Entretanto, é comum confundir os termos ética e moral, como se fossem a mesma coisa. Muitas vezes se confunde ética com espírito de corpo, que tem tudo a ver com moral mas nada com ética. Um médico seguiria a “ética” da sua profissão se, por exemplo, não “dedurasse” um colega que cometesse um erro grave e assim matasse um paciente. Um soldado seguiria a “ética” da sua profissão se, por exemplo, não “dedurasse” um colega que torturasse o inimigo. Nesses casos, o tal do espírito de corpo tem nada a ver com ética e tudo a ver com cumplicidade no erro ou no crime.

Há que proceder eticamente, como o fez o profeta Maomé: não seguir as regras morais sem pensar, só porque são regras, e sim pensar sobre elas para encontrar a atitude e a palavra mais decentes, segundo o seu próprio julgamento.

AULA 02

aráter Histórico da Moral

por Breno Lucano

Ontem li um folder, provavelmente de instrumentalização religiosa, que dizia que a perda de valores morais na juventude leva ao uso de drogas e violência. Disseram drogas e violência, mas implicitamente entende-se também homossexualidade, pedofilia, distanciamento do núcleo familiar. Essas afirmações merecem algumas reflexões detalhadas.

Vamos por partes. O primeiro ponto que se deve considerar é quanto à suposta perda de valores morais. Sempre recorro a experiência de Comte-Sponville nesse sentido quando, ao perguntar numa sala de aula para seus alunos se eles possuíam moral, eles disseram "não". Ora, mas nenhum deles, em nenhum momento, seria capaz de matar uma idosa indefesa ou de extrair o rim de uma criança e vender para o mercado negro. Quando Comte-Sponville usou a expressão moral, os alunos rapidamente associaram ao conjunto normativo religioso: amar pai e mãe, distanciar-se da tentação, evitação do sexo antes do casamento. São valores morais, é certo, e disso não duvidamos. Mas evitar a morte de uma criança também o é. Se ambos possuem conteúdo axiológico - são valores -, então porque alguns possuem resistência e outros são obedecidos sem reflexão, instantaneamente, prontamente?

O outro ponto que devemos considerar é que a moral surge quando o homem supera sua natureza puramente instintiva e passa a viver e privilegiar a coletividade. A moral surge como um mecanismo de regulação das relações entre indivíduos entre si e indivíduos e comunidade. Essas regulações historicamente se manifestaram na tentativa do homem de subsistir e defender-se e traduziu-se no uso de ferramentas, ou, em outras palavras, no trabalho. A fragilidade das forças humanas diante do mundo que o rodeia determina que, para enfrenta-lo e tentar dominá-lo, reúna todos os esforços possíveis para superá-lo. Assim, o trabalho assume função coletivista tão como a vida social assume função social: entende-se que, apenas reunidos seriam capazes de existir. Assim, nasce a moral com a finalidade de assegurar a concordância do comportamento de cada um com os interesses coletivos.

Os juízos Bom e Mal passam a deter conotação coletiva. É visto como um Bem tudo quanto for capaz de favorecer os interesses coletivos e Mau tudo quanto for contrário o que for capaz de debilitar ou minar a união. Estabelece-se, assim, uma linha divisória entre o que se espera - o Bem - e o que se deve evitar - o Mal -, baseado numa série normativa de comportamentos: todos são obrigados a trabalhar, a lutar contra os inimigos da tribo, etc. Essas normas comportam o desenvolvimento de adjetivos que a justifiquem e contribuam, como a solidariedade, ajuda mútua, disciplina, amor aos filhos da mesma tribo. Pelo mesmo motivo, tudo quanto mais tarde foi chamado vício foi qualificado como preguiça, egoísmo, etc.

Com o desenvolvimento progressivo da sociedade, o trabalho produziu desigualdades entre seus membros. A justiça distributiva, antes um Bem social, passa a ser desvalorizada em prol da produção. Comunidades passam a produzir mais que outras e, mais tarde Cidades-Estado. Prisioneiros de guerra passam a ser escravos, algo que inexistia nas comunidades primitivas. E a importância da escravidão perpassava todo o código de ética social. Era Bom e útil que a sociedade tivesse escravos.

No medievo os homens livres das cidades, como artesãos, pequenos industriais e comerciantes, estavam obrigados a oferecer certas prestações em troca de proteção ao seu Senhor que, a seu turno, estava submetido a um rei ou imperador. Nesse universo, inseriu-se também a Igreja, dado que possuía seus próprios feudos ou terras. A Igreja era proprietária do Senhor Supremo do qual todos os outros senhores deviam vassalagem, exercendo, portanto, poder indiscutível em toda a vida cultural e moral da sociedade. Por outro lado, a divisão social em estamentos e corporações produziu diversas morais. Assim, vimos o surgimento do código moral dos nobres e cavaleiros; o código moral de cada ordem religiosa, em seus mais variados estatutos; códigos das corporações; códigos universitários. Rodeia o imaginário popular em especial o código moral cavalheiresco, por seu desprezo pelo trabalho físico e sua exaltação ao ócio e a guerra. Era necessário que o nobre se exercitasse nas virtudes cavalheirescas: montar a cavalo, nadar, atirar flechas, esgrimar, prestar corte à dama.

E nasce a burguesia. A produção individual ultrapassou o entendimento da vassalagem e da natural diferença entre as pessoas, antes inquestionável. Cada um, agora, confia unicamente em suas próprias forças, busca seu bem-estar, ainda que tenha que passar pelos demais, ainda que tenha que vender um rim no mercado negro. Progressivamente a moral se alterou de uma simples relação de vassalo e seu Senhor, com todos os imperativos subjetivos com ele condinzentes a uma relação de perpétua concorrência de uns com os outros. A moral passa a ser intensamente egoísmo e individualista.

A moral coletivista dos povos primitivos foi substituído pela escravocrata, pelo culto à guerra, que foi transfigurada segundo os designos de Deus e Sua vontade, alterada pela busca individual por sobrevivência num mundo de perpétua concorrência e disputa. A servidão feminina foi substituída por militante luta por igualdade de direitos com os homens. Os negros conquistaram espaços sociais, com o direitos de assitir a missa com os brancos, de serem libertos, poderem votar e conquistar cidadania. Indígenas antes considerados aliados em guerra, quando não escravos dos portugueses, conquistam loteamento para a proteção de sua cultura e tradição. Os gays, antes considerados como doentes e submetidos à castração e tortura em supostas clínicas para superar seu desvio antes de Stonewall passam a ser entendidos como cidadãos plenos juridicamente, podendo até mesmo casar em alguns países. Deficientes físicos, antes explorados e humilhados em circo de horrores do século XIX, agora possuem direitos e deveres como qualquer outro cidadão.

A título de exemplo, há algo entorno de cinco anos, lancei no Portal Veritas as mesmas perguntas que hoje se encontram como enquete: 1) a união homoafetiva deve ser reconhecida?; e 2) a homofobia deve ser criminalizada? Na época a diferença entre sim e não foi surpreendente. A maioria dos votantes não gostaria que a união homoafetiva fosse reconhecida e que a homofobia não fosse criminalizada. Hoje, até o momento, com as mesmas perguntas, temos que 85% dos votantes aprovam a união homoafetiva e 92% aprovam a criminalização.

Não há moral que não se altere com a sociedade, não há Bem que não seja construção social. Assim, se pensarmos no folder que li no  início do texto, certamente temos um entendimento limitado do que é moral e sua verdadeira função e estruturação. Moral é sempre dinâmica, estabelecida, continuamente construída e variável de espaço em espaço, de tempo em tempo.

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